abril 06, 2012

O silêncio da ação já não sarava as feridas daquelas almas expostas.

Um enigma para Francisca


Sonia Regina

Na praça da cidade os minutos passavam como lufadas de um vento que não titubeava. Ressoando como fera, transportava a agonia daqueles tempos difíceis.
Pássaros cantavam baixinho como se ainda respeitassem o lamento que, contudo, não mais entrava por entre as frestas.
Nenhum outro som vinha da rua. A poeira sobre o vidro da mesa tornava-o opaco e cinzento. O tempo passava implacável. Francisca, enroscada num canto do sofá do pequeno gabinete, adormecera.
A luz do abajur tocava somente sua expressão crispada e contrita. Naquelas horas tão pouco generosas, a espera vazia tornara sua sensibilidade acuada, desamparando os sentidos. Dormir era uma boa maneira de descansar a mente e o coração.
O sonho a levou através dos meses de caminhos dizimados, sem qualquer eco à aflição dos viajantes.
Ao invés de claros, os dias eram silêncio - persistência branca e quente a lhes atravessar a garganta. Os viajantes ousavam em cada poro, suavam. A esperança os espreitava de cada canto e desejavam que o tempo passasse sem que precisassem regressar, ao invés de seguir.
O olhar atento não lhes trazia certezas, detalhes lhes escapuliam e o entusiasmo permanecia atado à quietude. O silêncio da ação já não sarava as feridas daquelas almas expostas.
A sensibilidade exacerbada daquelas pessoas, contudo, não perdia um dito seu. Via-se entre eles, falando-lhes. Eles a ouviam atentos, sentados ao redor da fogueira. Suas palavras não ficavam sem correspondência: as expressões enternecidas exprimiam momentos de nutrição.
A música de um coro os abraçava, isenta de cuidados. Deslizava macia, nos acordes.
A fumaça dos cigarros de palha desenhava no ar os pássaros, mas não seu canto. A natureza emudecia quando o pôr do sol se estendia sobre o sertão, procurando a cena que lhe faltava.
Mas os minutos passam céleres no espaço de tempo entre o crepúsculo e a alvorada. E se a obscuridade reinava agora, nada deteria o amanhecer.
O alento esperava um novo dia. Ouvia-se na cidade sem festa as dores derramadas no chão empoeirado. Febre e fome estridentes aliavam-se aos cheiros desconfortáveis da seca.
“Mas a poesia vela o desconsolo?”, ouviu-se perguntando, como se falasse em voz alta.
“Quando submetida ao silêncio apreensivo, cala-se também. Todavia, não é clandestina nas noites complexas. Vem, segue sem covardia. E confia”.
Sentou-se. Olhou a claridade que chegava, sentiu o calor da manhã e percebeu que dormira e sonhara. Contudo, o diálogo estava tão presente que ainda olhou à volta, em busca da sua interlocutora. Mas não havia ninguém além dela: estava sozinha.
Ficou confusa, pois se lembrava daquele ‘ser’ bastante bem. Uma mulher linda que ia se iluminando de dentro para fora. Dentro dela havia um fogo pequeno e constante. Brilhava, em sua transparência.
Viu no chão a lixeira, abarrotada de folhas de papel amassadas. Eram rascunhos, recordava, de poemas que tentara escrever na véspera.
Em cima da mesa um texto, escrito com letra diferente da sua, dizia:
Tentar viver em harmonia e equilíbrio deveria ser mais praticado entre os seres humanos e entre estes e a natureza.
A humanidade criou cidades com toda sorte de desentendimentos, desigualdades, descréditos, desconhecimentos.
Importarem-se uns com os outros elimina o preconceito e a exploração. Respeitar a natureza preserva seu equilíbrio.
Um pouco menos de impessoalidade, egoísmo, individualidade traria solidariedade e respeito, na diversidade. E também na reciprocidade, na forma de fazer-se presente mutuamente.
Sim, tenho em mim o Amor. Vibrem-no em si, sem restrições. Entreguem-se à paz e ao entendimento. O Cosmos conspirará a favor de  vocês se não ensaiarem seus gestos.
Meu nome é Concórdia, deva da harmonia.


Sonia Regina é Psicologa, Escritora e Articulista.  Diretora- Fundadora e Editora da Revista Letras et cetera: http://www.nanquin.blogspot.com.br/

5 comentários:

  1. Muitos, cara Sônia, confundem concórdia com "concordino" e se perdem em elocubrações baratas: perdem o equilíbrio, a harmonia, a capacidade de amar: não a paixão que se esvai, não a paixão que se consome e consome; o amor em nuances e travessias: o retirar o livro da estante no dia tempestuoso. Excelente motivo e desenvolvimento. Parabéns. Abraços, Pedro.

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  2. Lindo, lindo, lindo e edificante texto!
    Que a CONCÓRDIA se faça com todas as maiúsculas.
    Parabéns!
    Eliana Crivellari

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  3. Sonia: seu brilhantismo, a grandiosidade de seu texto, edificaram Literacia. Obrigada.
    Faça daqui seu espaço cativo, pois Literacia é parte sua , desde seu nascimento.
    Bjs e obrigada, nana

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    1. Nana, querida, obrigada pelo espaço e por suas palavras. Ocorre o mesmo com Letras et cetera e comigo, você sabe.

      Obrigada, Eliana, e, sim, que "Que a CONCÓRDIA se faça com todas as maiúsculas".

      Obrigada, Pedro e Rosa, que me honram com suas palavras.

      A todos o meu carinho. Beijos gratos,
      Sonia

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